quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

DESENCANTAMENTO

Feliz é quem se encanta. Descobre nas pequenas coisas um mapa de mistério. Isto faz falta ao mundo. Originalidade. O homem, farto da surpresa, faz tudo igual. Palavra da moda: clone. O leitor já viu no supermercado, as embalagens: uma a cara da outra. Os frangos todos depenadinhos, plastificados, em formação, como se houvessem saído de um mesmo ninho. As flores e jardins, dispostos e podados, tão harmoniosos que não ousam estirar um galhinho atrevido, nem mesmo um despetalar mais afoito. Obedientes à tesoura do jardineiro. É a estética cemiterial dos paisagistas. Dê uma olhada nas avenidas dos condomínios fechados. Lembram logo aléias de cemitérios, bem talhadas aos moradores semi-sepultos, encolhidos, passando mortuários nos carros de vidros escurecidos, quase invisíveis. Espetam aqui um pinheiro exótico, acolá várias palmeiras alienígenas. Vivendas, reclusas, tomam um ar único de túmulos bem cuidados. Parece que paisagistas e arquitetos não olham ao redor, fogem da euforia da flora tropical, e se entregam ao gozo fácil das revistas com cenários artificiais e arvorezinhas importadas. Dê atenção aos jornais da televisão. Os repórteres esforçam-se para exibir o mesmo design. Cabelo, maquilagem, entonação e voz. Quem se lembra das frutas? Mamões de cinco ou seis quilos. Mangas de cores, tamanhos e sabores surpreendentes. Bananas, então, onde estão as chamadas roxas, santomé, goiabinha, chiadeira, naniquinha, ourinho? Restam três ou quatro tipos, medidas para caber nas embalagens. Laranjas... Já se foram: joão nunes, baiana, fofó, sangue, lisa... Há uma pera, quase sempre seca, e brilhante com um adocicado sabor de agrotóxico. Se as coisas da terra andam assim, o que dizer daquelas que o homem manufaturou? O horror da gastronomia universal, os sanduíches que encobrem em fatias de pão molhos imperscrutáveis e carnes inconfessáveis. Redondos, fofos, melosos de maionese e catchup. Os devoradores ficam na incômoda posição de cachorro que abocanhou osso grande de mais. Vai mordendo, remoendo, lambuzando a cara, respingando em montanhas de papel o rejeito da merenda. Depois empurra o embucho pra dentro, a copos ou litros de cáustico refrigerante. Com o olho na televisão, na mídia, essa gente foi perdendo alguns sentidos, a começar pelo paladar. E as mulheres... Adeus corpinho de violão! O novo estilo é de cabide das grifes de moda. Pegam as mocinhas impúberes, treinam, adestram. Vão adelgaçando, esfiapando até virarem umas garcinhas anoréxicas que enchem as burras dos fotógrafos, dos donos dos desfiles, dos olheiros do mercado de carne magra. Umas já nasceram assim, outras se fizeram assim por amor do ofício. Um dos olheiros, perito em encontrar essas carninhas novas por aí, foi didático, enquanto formava novo plantel: - Esta é até boa. Podia ser aproveitada. Porém tem um nariz ruim. Seria preciso uma plástica. Mas como a oferta é grande, não vamos perder tempo, vamos escolher quem já tem nariz no jeito.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

DEIXEM O BANDEIRANTE EM PAZ

Goiânia é um susto. Assustou os descampados da Campininha,quando Pedro Ludovico chegou e, em nome do Estado Novo, ordenou: Faça-se a cidade! Susto maior Goiânia deu no velho Goiás. Mudou rumos, ensinou caminhos, mudou rosto e fala. Puro susto, Goiânia escapou das mãos de Pedro, de Atílio Correia Lima, de Venerando de Freitas. Seguiu assombrando sertões e estirando o olhar de moça faceira para o resto do país. Insatisfeita, namorou o mundo. Exibiu vezos de Capitu para japoneses, italianos, gregos e troianos. Cativou a todos. E foi se enchendo a cidade, sempre de espantos, sustos e novidades. Desembestou no planalto. Perdeu os freios, sacudiu o cabresto. Espalhou-se numa largueza a perder de vista. Com sua prosápia de moça fácil, Goiânia enche os olhos dos incautos. É apenas misteriosa. Quando a agridem, desrespeitando seus predicados de donzela fidalga, apenas esquece. Ou deixa o nominho do ofensor tão miúdo, chulo, amorfo que esvaece sem deixar rastro. Já foi linda jóia arte decô. Infância de cidade-jardim. Pensou que podia ir crescendo, aumentando seu bem-querer, para além do desenho original. A cruz Anhanguera-Goiás tomando rumos de horizontes. Caberia todo mundo atapetando de casas e edifícios as planuras e colinas. Mas chegaram bárbaros. Chegaram gentios. Chegaram vândalos. Para esses não sobra lugar para espetar uma placa, levantar um espigão, semear um artefato de mau gosto. Nos últimos dias, apareceu um edil. A palavra servia para nomear um magistrado no império romano. Cuidava de inspecionar e conservar as coisas. Daí vem o nosso vereador. Criação dos portugueses, que tem mais ou menos as mesmas funções. Este daqui quer cassar a estátua do Bandeirante, que há muito está de pé na praça de igual nome. Bem ali, no centro da cidade. Não há goianiense ou chegante um pouco atento que não tenha este ponto como referência. Ali os estudantes se reuniam, quando ainda eram capazes de indignação e sonho. Ali se faziam os comícios da democracia aprendiz. Sempre foi reprovada, mas sempre pôde voltar a soletrar. Espetáculos de música, comemorações, festas. Por isso, a praça com sua estátua estão gravadas na lembrança, na paisagem afetiva do goianiense. Se nossos mortos têm memória, nossos pais, mães, avós levaram para o outro mundo o postal de Goiânia deste jeito. Com a praça do Bandeirante e o garboso paulista, de bacamarte, olhando para o oeste. A saga bandeirante foi cruel e árdua, como foi a conquista e saque da América Latina. Esses aventureiros carregavam um pensamento, uma crença que sustentava sua ambição. Sem eles talvez não estivéssemos aqui. Nem mesmo o ilustre vereador. Ao que se sabe, não é Xavante Carajá ou Craô. Podemos passar muita coisa a limpo. A começar pela explicação à sociedade sobre o que alguns políticos eleitos, inclusive vereadores, estão fazendo de seu mandato em favor do povo que os elegeu. Ora, deixem o Bandeirante, a cidade em paz!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

HAVIAM DEZ ÍNDIOS SENTADOS

Eu vi, senhores, em Sukua,
dez índios sentados.
Eu vi dez índios molhados
da selva amazônica
sentados em Sukua.
Os índios não estavam bêbados,
não estendiam as mãos aos turistas,
não pediam aos frios passantes
quinquilharias de plástico,
obséquios eletrônicos
nem a doce embriaguez
da pax americana.

Eu vi dez índios sentados.
Foi em Sukua,
sob o céu de Morona Santiago,
no convulso e vulcânico Equador.
Dez índios com suas lanças,
dez índios com suas tintas
da cor do sol da manhã.
Com lanças de sangue abrem
na selva um rio sem nome,
um rio de liberdade
no peito de cada homem.

Fazem um ofício de guerra:
ensinar passo e encontro
nos descaminhos da selva.
Eu vi dez índios sentados,
os dedos na tipewriter
e a esperança na mão.
Pela distância ensinavam
com alfabetos e letras
palavras novas e antigas
que são águias disparadas
contra o ninho da opressão.

Eu vi dez índios sentados.
Senhores podiam ser
de seus destinos antigos.
Eu vi dez índios sentados
e conto à América este fato.
Conto aos índios,
conto aos brancos,
com a certeza feroz
de que uma nova lição
se pode colher segura
das tintas deste retrato.

Eu vi dez índios sentados
e disso faço notícia,
bajo el cielo azul de Sukua,
en Morona Santiago,
del dulce y convulso Ecuador.

INFERNO CELULAR

Com o aparelhinho no bolso ou pendurado no cinto, o fulano sente-se membro da família consumista. Não é um sem celular. Toma ares de importância incompreensível. Desatenção pernóstica. Interrompe conversas, invade diálogos. Já vi um que estirava o pescoço, em contorções de galinha bebendo água, falava alto para a platéia involuntária: - Olá doutor, como vai? Falou com o deputado? E nosso negócio? O Senhor sabe, os votos daqui são favas contadas. Depois de olhar, superior, a ralé próxima, desliga sorridente. Outro, de segunda idade, quase terceira, encosta o aparelhinho na bochecha de gozo sedentário e cervejadas crepusculares, murmura para alguém com blandícia e paixão. Remexe dengoso o traseiro murcho, alisa com a mão a barriga insinuante, ajeita a calça, enquanto ronrona doçuras, deixando transparecer o momento de feliz herança juvenil. Uma bicota e um hum... hum, conclui o diálogo de Romeu com alguém no ciberespaço. Para meu amigo Ostra, entretanto, o objeto místico-erótico nunca trouxe o esperado prazer. Nos primeiros dias saiu espalhando seu úmero, disparando torpedos e mensagens. Amigos, vizinhos, parentes e outros incautos. Era uma aventura apertar o botãozinho que comandava a discagem de onde estivesse. Caminhando pela rua, no barzinho, no consultório, ao volante do carrão e até nos lugares recônditos onde se cumprem as necessidades primais do ser vivo, nos banheiros, entre gemidos e sacudidelas. A lua de mel durou poucos dias. Começaram a chegar as faturas. Chamadas de lugares nunca pensados. No meio da noite. Até uma ligação de falso seqüestro. A voz sombria dizia que o irmão estava em cativeiro. Ouvia gritos e apelos. Teve a sorte do gerente do banco desconfiar do saque em dinheiro vivo e avisar a polícia. Escapou da extorsão, mas ficou traumatizado. Ligou para a tal servidora. Quero cancelar minha assinatura. Estou farto de celular. O atendente indaga o nome, CPF... Quer saber o motivo. O Ostra esclarece. Cancelar não pode, pode trocar por pré-pago. O atendente pede um tempo. Fica tocando uma musiquinha chata. Acaba dizendo que não é com ele. Vai passar a ligação. Outro atende. Pergunta tudo de novo. Se não quer outro plano. Fala de uma promoção. Ganharia tantos torpedos, mais não sei quantos minutos para falar com a sogra. Até um aparelho novo. Quero cancelar a assinatura. A ligação cai. Recomeça. Três dias depois, uma semana, um mês. Vai de São Pedro a Nossa Senhora, de atendente a atendente e nada. A conta continua chegando. Cada vez mais alta. E nada de conseguir ser ouvido. Percebe chiste e ironia no atendente treinado. Depois a ligação cai. Sísifo, recomeça. Por fim, Ostra passou a gesticular, falar para seres alados, sorrir desatinado e, para finalizar, fechou-se. Ninguém notou. Porque depois que adquiriu o celular desenvolveu esta mania de Macbeth, de conversar e rir sozinho.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Elegia X

Elegia para meu avô André

O Riachão das Neves fala comigo
em suas funduras.
O verde vale
de acolhimento vulcânico
tresanda a cana, mel
e terna rapadura.
Ainda sigo os asnos insolentes
nas cacimbas,
as ruas estreitas, casas genuflexas
endereçadas aos solilóquios tristes.

Por ali passou meu avô André
pastoreando cobras,
ordenhando peçonhas,
convencendo os répteis
ao homizio das furnas.

Ninguém guardou seus exorcismos,
suas benzeções, sua simples magia
de pescador e santo.

No angical,
enlaçado de raízes,
repousa o mago André, o herbolário.
Há pouco, campeava o pé-duro xucro nos gerais.
Há pouco, consultava o bornal de curas.
E ia reunindo as cobras benfazejas,
convertendo-as á paz,
evangelizando-as para a aceitação
dos humanos imperfeitos.

André passava a mão sobre as cabeças dos filhos
e procurava limpar seus horizontes.
André padecia, discreto,
a dor futura dos filhos
ao peito pressentida, em secreto.

Quando André quis morrer,
mandou buscar os tambores
da Folia do Divino.
Zumbou a zabumba. Tiniu a viola.
Sofreram os cantos da despedida.
Quando fez silêncio a liturgia santa,
André recolheu, contrito, sua alma humilde.
Naquele entardecer
o gado pé-duro lamentou.
O marruá gemeu, cavou a terra,
olhou choroso o poente
e as vacas, orfeônicas, prantearam
até se apagar a luz do dia.

Réquiem para um bosque



Aidenor Aires



Ali corria um córrego. Depois um fio de água. Hoje nada. Assoreou. Mas as gameleiras, angicos, imbaúbas, guapevas, brotos de aroeira, jatobazeiros, ipês, resistem. No verde das árvores e do chão reina aveludada a braquiária e algumas moitas de colonião, alienígenas, sustento da cultura goiana. Algumas árvores novas, plantadas à nossa escolha, nas voçorocas que não foram loteadas e vendidas, sufocam o atrevimento de capim jaraguá e meloso, restantes. É a lição dada aos menininhos no dia da árvore. Plantamos nossa mudinha. Vamos dormir surdos ao rosnado das motos serras. Não tenho carteirinha pra falar de meio ambiente. Disso, sei pouco. Mas, fiz estilingue, bodoque, cabo de enxada e todos os meus brinquedos. Também devo às frutas do campo, aos lambaris e tambiús, aos galhos das árvores, os nutrientes e o corpo que me trouxeram até aqui. Fruta de ema, gabiroba, mama cadela, articum, cagaita, gravatá, colhia-se no cerrado ralo, de um ou dois pelos. Ingá, bacopari, veludo branco, vermelho, guapeva, jaracatiá, banha de galinha, jatobá, era nas matas beirando o Botafogo, Anicuns, Meia-Ponte, João Leite. Conservo uma relação útil e afetiva com estas coisas, legitimada por minha infância pobre perdulária de liberdade. Carmo Bernardes, que conhecia como ninguém, a textura, serventia e sabor, de todas as coisas do cerrado, com seu jeitão de socó espiando piaba, a mão no bolso, um pouco enviesado, e os olhos lá na frente, lecionava: - Companheiro, escrever tem que servir pra alguma coisa. Para ajudar o mundo, para melhorar o ser humano. E, um pouco lírico: - Nós somos feitos de tudo que existe: ar, os sais da terra, a água. O sol e chuva. A vida que está na formiga, na árvore, no pássaro é a mesma. Qualquer ferida em um desses vizinhos da cadeia da vida acaba doendo em nós. É por isso que volto ao assunto. O bosque que havia no território do Jóquei Clube, na Anhanguera com a Rua Três. Arrasaram tudo neste fim de ano. Ficou o buraco. O silêncio. Alguém justificou o desmatamento: Aquilo era propriedade privada. Pedro Ludovico que ali brincou carnavais e exibiu engomados ternos de linho branco ao som de La Cunparsita, não pensava em fim tão aristocrático. Pedro revolve-se no túmulo. Com ele, estrebucham D. Gercina, Venerando de Freitas Borges, Colemar Natal e Silva Amália Hermano e seu Maxi. Mesmo com a conivência das autoridades e seja legal, como os cartões de crédito que o governo dá para a farra de seus ministros, é crime contra a cidade e a natureza. Nem é preciso saber nomes dos envolvidos. Há um argumento padrão, irresistível: O país está cheio de crimes maiores. O que significam umas árvores? As lembranças de quem gostava delas? Uns micos que saltavam nos galhos? Uns passarinhos tolos que teimavam em incomodar os ouvidos da gente? Ou mesmo um pouquinho de beleza? O gosto excêntrico de respirar oxigênio? O dinheiro tudo resolve. Aqui e agora... Porque a Dona História não perdoa. E, ainda, leitores, creiam, pode haver o Inferno.